O carro de Joaquim Canejo andou 525 mil quilómetros a trabalhar para a reforma agrária
(...)Um busto de Lenine testemunha a conversa. Joaquim Canejo é um homem do Couço, concelho de Coruche, por várias vezes chamada (pelos fascistas, diz) de "Pequeno Moscovo". Nenhum outro partido ganha eleições. O Partido Comunista Português (PCP) continua de pedra e cal.
"Ainda tem de morrer mais uma série de velhos para eu poder ser presidente". A citação é atribuída por Joaquim Canejo a um candidato do PS (derrotado) à Junta de Freguesia do Couço. Mas para este militante, falta aos mais jovens a dureza da ditadura para terem o espírito de comunidade. Afinal é isso que o comunismo significa. Ri-se em reacção à pergunta se era do PCP. A sua história acaba por responder à dúvida. Joaquim Canejo trabalhou sempre no campo e, durante muitos anos, foi seareiro. Trabalhava de sol a sol. Ganhava-se 20 escudos por dia, durante seis dias por semana.
O 25 de Abril ouviu-o pelo rádio que levava para a seara. "Estivemos a apreciar aquilo tudo pelo rádio", conta, recordando como antes escondia o "Avante!" no meio dos queijos ou como albergava clandestinos em sua casa. O pós-25 de Abril acabou por o levar às lutas pelos direitos dos trabalhadores. Primeiro no Sindicato dos Operários Agrários, onde ajudou a inscrever cerca de oito mil trabalhadores, e depois no Comité da Reforma Agrária. A partir do Couço ajudou nas ocupações das terras.
"Os grandes agrários começaram a vender o gado e a tirar as máquinas. Aí houve, então, a grande necessidade de deitar a mão à terra para se produzir". Explica a reforma agrária pela necessidade. As terras não estavam a produzir e os trabalhadores precisavam de emprego. Na altura de reversão, a situação, segundo Joaquim Canejo, era diferente. "Quando tomaram conta das terras [os proprietários], estava tudo a produzir". Aí resistiu-se. Foram forçados a sair das terras pela polícia. Joaquim Canejo fala de repressão na saída, mas de passividade nas ocupações em Coruche. Das suas recordações, que parecem frescas, sugere que a primeira ocupação no concelho foi a Herdade do Peso, entre as Brotas e o Ciborro.
"Foram os trabalhadores que ao verem-se lá desprezados vieram aqui ao Couço ter com a gente. Falou-se com a tropa e foi-se lá". Na terra só estava o feitor. "Torceu-se", mas nada havia a fazer. Outra memória leva-o à Herdade dos Pensais. "Estava completamente abandonada" e, por isso, "as senhoras ficaram contentes de a gente ter ocupado aquilo". "A gente foi lá, limpámos aquilo, pusemos a escola a trabalhar, e puséramos lá casais. Essas pessoas, dentro da herdade, foram as que mais produziram". Agora, "há anos que não produz". É com tristeza que diz ver tanta terra improdutiva. "Se sair daqui para fora, só encontra arames e caça".
As histórias vão-se desfiando como um rolo de linha. Joaquim Canejo pertenceu ao Comité da Reforma Agrária e era, muitas vezes, chamado para ajudar. "Era ali que iam discutir os seus problemas". Mas, ele, Canejo, "nunca estive a trabalhar em herdade nenhuma. Nem recebi dinheiro das herdades. O meu trabalho foi gratuito". Tinha uns dinheiritos guardados. À causa pôs, ainda, ao serviço o seu carro. "Andou 525 mil quilómetros a trabalhar para o sindicato e para a reforma agrária".
Durante a reforma agrária começou a nascer a Cooperativa "A Conquista do Povo", no Couço, onde ainda hoje dorme. "Durmo aqui dentro há 36 anos". Para impedir a "gatunagem" de roubar o que lá está dentro. Não tem medo? "Não tenho medo nenhum. Sempre vivi no campo, dormi muito tempo lá na charneca, ao relento". À Cooperativa - que chegou a ter dois mil sócios - dá todo o seu tempo. As obras começaram a 6 de Setembro de 76. "Toda a gente veio ajudar". Evoluiu-se "e chegou aqui a estar em grande". Tinha produção de carnes que a ASAE pôs fim. De resto, "vende-se tudo".
"O meu papel é ver isto a trabalhar". Não quer outro. "Fiz sempre muitas coisas pelo bem deste povo. Fiz o meu trabalho". Não quer glórias. Com humildade, diz que sempre tentou ajudar e "explicar às pessoas que era preciso produzir para colher". E sai para ir atender os cooperantes. O busto de Lenine, esse, continua a testemunhar uma vida dedicada causa. (...)
in Jornal de Negócios – edição online 15.02.10
(...)Um busto de Lenine testemunha a conversa. Joaquim Canejo é um homem do Couço, concelho de Coruche, por várias vezes chamada (pelos fascistas, diz) de "Pequeno Moscovo". Nenhum outro partido ganha eleições. O Partido Comunista Português (PCP) continua de pedra e cal.
"Ainda tem de morrer mais uma série de velhos para eu poder ser presidente". A citação é atribuída por Joaquim Canejo a um candidato do PS (derrotado) à Junta de Freguesia do Couço. Mas para este militante, falta aos mais jovens a dureza da ditadura para terem o espírito de comunidade. Afinal é isso que o comunismo significa. Ri-se em reacção à pergunta se era do PCP. A sua história acaba por responder à dúvida. Joaquim Canejo trabalhou sempre no campo e, durante muitos anos, foi seareiro. Trabalhava de sol a sol. Ganhava-se 20 escudos por dia, durante seis dias por semana.
O 25 de Abril ouviu-o pelo rádio que levava para a seara. "Estivemos a apreciar aquilo tudo pelo rádio", conta, recordando como antes escondia o "Avante!" no meio dos queijos ou como albergava clandestinos em sua casa. O pós-25 de Abril acabou por o levar às lutas pelos direitos dos trabalhadores. Primeiro no Sindicato dos Operários Agrários, onde ajudou a inscrever cerca de oito mil trabalhadores, e depois no Comité da Reforma Agrária. A partir do Couço ajudou nas ocupações das terras.
"Os grandes agrários começaram a vender o gado e a tirar as máquinas. Aí houve, então, a grande necessidade de deitar a mão à terra para se produzir". Explica a reforma agrária pela necessidade. As terras não estavam a produzir e os trabalhadores precisavam de emprego. Na altura de reversão, a situação, segundo Joaquim Canejo, era diferente. "Quando tomaram conta das terras [os proprietários], estava tudo a produzir". Aí resistiu-se. Foram forçados a sair das terras pela polícia. Joaquim Canejo fala de repressão na saída, mas de passividade nas ocupações em Coruche. Das suas recordações, que parecem frescas, sugere que a primeira ocupação no concelho foi a Herdade do Peso, entre as Brotas e o Ciborro.
"Foram os trabalhadores que ao verem-se lá desprezados vieram aqui ao Couço ter com a gente. Falou-se com a tropa e foi-se lá". Na terra só estava o feitor. "Torceu-se", mas nada havia a fazer. Outra memória leva-o à Herdade dos Pensais. "Estava completamente abandonada" e, por isso, "as senhoras ficaram contentes de a gente ter ocupado aquilo". "A gente foi lá, limpámos aquilo, pusemos a escola a trabalhar, e puséramos lá casais. Essas pessoas, dentro da herdade, foram as que mais produziram". Agora, "há anos que não produz". É com tristeza que diz ver tanta terra improdutiva. "Se sair daqui para fora, só encontra arames e caça".
As histórias vão-se desfiando como um rolo de linha. Joaquim Canejo pertenceu ao Comité da Reforma Agrária e era, muitas vezes, chamado para ajudar. "Era ali que iam discutir os seus problemas". Mas, ele, Canejo, "nunca estive a trabalhar em herdade nenhuma. Nem recebi dinheiro das herdades. O meu trabalho foi gratuito". Tinha uns dinheiritos guardados. À causa pôs, ainda, ao serviço o seu carro. "Andou 525 mil quilómetros a trabalhar para o sindicato e para a reforma agrária".
Durante a reforma agrária começou a nascer a Cooperativa "A Conquista do Povo", no Couço, onde ainda hoje dorme. "Durmo aqui dentro há 36 anos". Para impedir a "gatunagem" de roubar o que lá está dentro. Não tem medo? "Não tenho medo nenhum. Sempre vivi no campo, dormi muito tempo lá na charneca, ao relento". À Cooperativa - que chegou a ter dois mil sócios - dá todo o seu tempo. As obras começaram a 6 de Setembro de 76. "Toda a gente veio ajudar". Evoluiu-se "e chegou aqui a estar em grande". Tinha produção de carnes que a ASAE pôs fim. De resto, "vende-se tudo".
"O meu papel é ver isto a trabalhar". Não quer outro. "Fiz sempre muitas coisas pelo bem deste povo. Fiz o meu trabalho". Não quer glórias. Com humildade, diz que sempre tentou ajudar e "explicar às pessoas que era preciso produzir para colher". E sai para ir atender os cooperantes. O busto de Lenine, esse, continua a testemunhar uma vida dedicada causa. (...)
in Jornal de Negócios – edição online 15.02.10
----------------------------------------------------------------------------