domingo, 20 de abril de 2008

Tradições Populares

“Matança do Porco”

Era Domingo.
Antes do sol nascer já os convidados da família alargada do Ti João Duarte entrava no pátio de estrume e mato, coberto de tojo e alecrim.
“A arte da matança não é p´ra qualquer um”, dizia o Ti João Duarte, que dava ordens ao Julião para ir buscar a banca e ao Joaquim para trazer a corda, a roldana e o chambaril.
O dono da casa continuava a dar ordens a toda a gente e gritava:
“Ó Jaquina, trás lá os alguidares, a colher de pau, a cebola, o sal e o vinagre!”
E resmungava: “Raio das mulheres qu´é preciso dizer-lhes tudo!”
Era uma roda viva.
O Julião, o Jaquim e o Mateus foram buscar o porco à pocilga, preso por uma corda a um pé, e conduziram-no até à banca.
Ali, amarraram-no de pés e mãos, com a ajuda dos homens mais valentes, e içaram o animal para cima daquele estrado da morte.
O bruto, de algumas arrobas, grunhia e esperneava como que adivinhasse o fim que o esperava.
As mulheres cavavam um buraco no chão do pátio para onde acarretavam tojo, mato e lenha.
Ti João Duarte, de calças justas, jaleca e barrete enfiado na cabeça, lavava, com água quente, a goela do porco, que não parava de guinchar, apertado, no patíbulo, por quatro homens de mangas arregaçadas.
Ti Jaquina coloca debaixo da banca o alguidar de barro onde havia posto o vinagre, o sal e a cebola.
O magarefe, agora com um avental a tapar-lhe a jaleca e as calças apertadas, e de grandes panos atados à cintura, depois de afiar o facalhão de dois gumes no fuzil, crava-o, num gesto rápido e frio, na goela do animal.
O sangue esguicha para o alguidar onde é mexido com a colher de pau pela mão da Ti Jaquina. O porco guinchou, guinchou, até que deu as últimas.
Julião, de forquilha em punho, acarreta o tojo a arder para cima do morto, a fim de o chamuscar.
Outros homens, com facas e cacos de telha, raspam o porco que vai ficando mais limpo.
Descalçam-lhe as unhas, lavam-no com água bem quente e, por fim, cortam-lhe as orelhas e o rabo.
De volta da fogueira, agora com ignição, o grupo assiste à assada.
Os cachopos furam por entre as pernas dos adultos, na esperança de lhes calhar um quinhão.
No barracão, uma mesa muito grande com pão caseiro, azeitonas e água-pé, vai ser o centro da festança.
Enquanto isto, Mateus e Julião enfiam o chambaril nos pernis do sacrificado, a uma ordem do Ti João Duarte e, puxando pela corda, através da roldana, presa na trave do barracão, penduram o animal que ali fica a escorrer para dentro dum “tinajo”, depois de ser aberto e de lhe tirarem a bexiga, disputada pela rapaziada para fazer de bola de futebol; o fígado, os bofes, os rins, o baço, o coração e a toalha das tripas, tudo migadinho para dentro duma sertã com azeite, vinho tinto e temperos a fim de preparar o almoço a que dão o nome de cachola; as tripas que hão-de ser lavadas com sal e limão no Rio Alviela, numa corrente de água cristalina, com a ajuda de uma vara fininha.
Uma balança de pilão, presa à trave, ao lado do porco, reza o peso limpo.
A cachola já cheira bem.
Há alegria estampada no rosto de toda a gente.
A grafonola ajuda. A pinga, também.
Dois homens fazem cigarros com tabaco «Duque» e mortalhas de papel «Zig-Zag».
As raparigas, numa roda, dançam e cantam:
- O Saramago é que atrasa
- A seara ao lavrador
- Bem atrasada qu´eu ando
- De falar ao meu amor.
Ti João Duarte pega na concertina de duas escalas e toca um corridinho que faz toda a gente andar numa fona.
“Todos prá mesa” – grita a dona da casa.
E lá se vão chegando, deixando a testeira para o Ti João Duarte.
Falam todos ao mesmo tempo, euforicamente.
Conta-se o que foi a vida daquele animal e das canseiras que deu, animal sacrificado para a legria do grupo e o sustento de luxo daquela família.
O resto do dia é acompanhado com água-pé nos intervalos dos preparativos para a tarefa da desmancha que há-de ocorrer no dia seguinte.
Estamos na segunda-feira, e porque é dia de trabalho, o grupo só volta a reunir-se à noitinha para o jantar de febras fritas, no azeite, com louro e alho.
“Jaquina” – chamou o marido – “onde raio puseste tu o serrote e o cutelo?”
Finalmente o porco começa a ser desmanchado.
Separam-se as diversas partes.
O toucinho, depois de preparado, vai para a salgadeira.
A banha para fazer, ainda hoje, as farinheiras.
As carnes negras de sangue são migadas para a feitura do chouriço negro que leva vinho tinto, sangue, cominhos, cravo de cabeça, pimenta e sal, tudo de marinada durante quatro dias num alguidar de barro.
As carnes magras são, igualmente, cortadas em pedacinhos para fazer o chouriço de carne e colocam-se noutro alguidar com vinho branco, pimentão, louro, alhos e sal, até que ao fim de cinco dias hão-de encher a tripa.
Chega-se a quarta-feira. É dia de encher os negros, atar e pôr no fumeiro.
As mulheres pegam na tripa e enfiam nela uma enchedeira – género de funil – por onde empurram as carnes negras, com a ajuda dos polegares.
O resto, a que chamam o caldo dos negros, será o jantar de amanhã, de novo, para toda a família, tal como aconteceu hoje e que foi constituído de tripas com arroz e nabiça, manjar delicioso, a julgar pela sofreguidão de todos.
Ti João Duarte faz o balanço destes quatro dias bem passados e marca a data para comprar no mercado de Pernes, o leitão que há-de fazer a festa igual, daqui a um ano.
Nessa altura lá estarão todos, Outra vez. No mesmo ritual.
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in “Nossa Terra, Nossa Gente” – José da Luz Saramago
Publicado no Jornal "O Alviela" - 08-07-1991