domingo, 28 de dezembro de 2008

Gentes de Outras Épocas...



Temos vindo a ler o livro “Tios e Tias do Espinheiro – Diálogo com o Passado” da autoria de João Vitalino Ribeiro Martinho e editado pela Junta de Freguesia do Espinheiro, concelho de Alcanena.
Livro optimamente elaborado, no qual, o autor descreve as vidas e os costumes das gentes do Espinheiro em épocas remotas.
Com o devido respeito pela obra do autor, citamos um excerto do livro, o qual convidamos os leitores a ler a obra literária na íntegra.
A.A.
..........................................................

(…) Albertino da Silva Louro (Ti Albertino Manelico) 1897 - 1985 (...)

(...) Mal o sol se punha para as bandas do Carrapato, arrancando figuras fantasmagóricas nas sombras que bordejavam os caminhos, Ti Albertino, verificada a onça de tabaco e demais pertences guardados nos bolsos do colete de cotim, ajeitava o barrete e entrava no palheiro, iniciando um monólogo como se estivesse a falar para o macho e este entendesse a sua lenga lenga:
- Ó Pancrácio prepara-te que vamos ao passeio…! Nã gostas muito dos ares do mar… mas é a vida… tem que ser…
E, enquanto chupava a beata fazendo luzir a centelha na semi-obscuridade, iniciava o ritual de sempre nesta circunstância. Primeiro punha um litro de favas secas na manjedoura o qual o animal atacava ruidosamente com estalidos nos dentes a mostrar avidez pela ração que lhe havia de assegurar um mínimo de força para a jornada. Depois punha-lhe o cabresto, esticava a cilha e colocava sobre a albarda os odres de azeite ocultos pelo jaleco coçado. Mais um balde de água que o animal sorvia tranquilamente, resfolegando com força como se desse um sinal de prontidão para a partida.
Ti Albertino, puxando a arreata, ia contrariando a crença natural do Pancrácio:
- Anda cá pra rua malvado…!
- Vamos lá e não te ponhas com felestrias… olha que, no mais tardar, temos que lá tar à uma da manhen…
E lá partiam. Desciam a cumeira, ponto alto da aldeia, na direcção de Alcanede, sempre a talhar, isto é encurtado, o mais possível, o caminho que bem depressa estaria envolvido pelo negrume da noite. Aos poucos a silhueta de Ti Albertino levando o macho à arreata desvanecia-se a lembrar o esboço dum quadro de pintor. Para vencer o tédio da jornada falava com o animal: … (…)

(…) E para matar o tempo, Ti Albertino lá ia cantarolando e praguejando se algum acidente lhe dificultava a marcha.
- Raios partam tanta pedra e tanto buraco… tanta silva… e tanto carrasco…!
A jornada ia ser duríssima. Peniche estava a mais de doze léguas (60Km) bem contados em linha reta.

==============///================

Mal os alvores da madrugada (barbas de gato) anunciavam a aproximação dum novo dia e os galos começavam a cantar, acordando os mais sonolentos, ouvia-se ao longe o som dum búzio vindo dos lados da Várzea, um vale que dá acesso ao Espinheiro por noroeste. Aquele som entrecortado e modulado pelo vento tinha algo de lúgubre, ecoando pelas encostas.
- Tuuu…!Tuuuu! Tuuuuu
Ti Albertino regressava mais uma vez com as caixas de sardinha que trocara por azeite. Cansado mas firme como uma verga de aço, de pernas curvas rematadas por umas botas forradas que mandara fazer na oficina do António Ferrêro, entrava pelas Casas de Além para iniciar a venda.
Não tinha à sua espera as palmas duma multidão entusiasmada nem as predipitadas intervenções da imprensa sempre ávida de acontecimentos invulgares, contudo acabava de realizar o impressionante corta-mato nocturno, num percurso continuado, em 18 horas, cometimento com o qual ninguém jamais se atreveu a concorrer.
Conta-se que alguém, um dia, lhe narrou a história passada no ano 490 antes de Cristo, so soldado grego Fidípedes que correu 40 Km para ir anunciar a Atenas a vitória da Maratona, após o que caiu fulminado.
Ti Albertino ficou pensativo e comentou, interrogativo:
Mas isso foi de dia ou de noite? Mal empregado rapaz…!
Foi assim o mais carismático maratonista, peixeiro e almocreve do Espinheiro… (…)

---------------------------------
João Vitalino Ribeiro Martinho, nasceu no Espinheiro em 29 de Outubro de 1928. Fez os estudos em Santarém e Coimbra, donde regressou em 1951, tendo licenciado no Ensino Primário e na Escola do Magistério de Santarém onde desempenhou as funções de orientador de estágio, secretário das escolas anexas e regente das cadeiras de Didática Geral e Didática Especial. Foi jubilado em 1992.
........................................................
A.A.