quinta-feira, 29 de maio de 2008

Nossa Terra, Nossa Gente

“O popó, o telemóvel e o que mais adiante se verá”

Nuno foi juntando dinheiro para a entrada do carrinho. Casou com a Vanessa Alexandra e as ofertas dos convidados para a boda deram para a entrada da casinha que agora têm.
Um casal feliz, com sorte, ambos empregados (como agora tem de ser). Ele na fábrica de curtumes e ela no comércio.
Nuno não tem gosto pela leitura (só os jornais desportivos lhe despertam algum interesse), mas uma editora de vendas por correspondência conseguiu, através de uma publicidade bem feita (enganosa?), vender-lhe uma colecção de livros porque havia a oferta de um telemóvel.
As obras ficaram a enfeitar uma estante da salinha. Ficou mesmo a calhar e ao gosto da Vanessa Alexandra. O telemóvel é um objecto útil e que está na moda.
Nuno gosta de acelerar e de acender os faróis de nevoeiro logo que uma nuvem encubra o sol.
De telemóvel no ouvido esquerdo, cotovelo assente na janela aberta do seu carrinho, é uma atitude habitual sempre que atravessa a vila.
«Como estás, Vanessa? Estava a ver que nunca mais chegava o fim do mês… Até qu´enfim… Já recebi, mas tens de ter paciência, este mês não te posso dar nada. Quarenta contos p´rá prestação do carro, oito p´rós livros, doze p´ró tabaco, cinco p´rá gasolina e uns trocos p´ró café, é mesmo à tabela, e já não estou a contar com a Telecel que, segundo me disseram, leva um dinheirão das chamadas…
Vou desligar, adeus».
Do outro lado, Vanessa, triste, também ia fazendo as suas contas:
«Quarenta contos p´rá prestação da casa, oito p´rás panelas da Euromarket que a televisão me vendeu, cinco p´ró talho mais pão, luz, água, gás. O que mais sobrará para ir ao supermercado? Nada! O que me valeu é que esta semana, com os colegas, fiz o totoloto…
… E o diabo nem sempre há-de estar atrás da porta».
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in "Nossa Terra, Nossa Gente" - Autor José da Luz Saramago
Publicado no Jornal "O Alviela" - 14.03.1997