sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Colunistas


Citamos na íntegra, o artigo de opinião da autoria do Jornalista e Escritor Baptista Bastos, publicado hoje no “Jornal de Negócios, edição online.
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A. Anacleto

Como se chegou a isto?

(…)"O neoliberalismo conduziu as desigualdades a limites intoleráveis, e à exibição do luxo mais agressivo." A frase pertence ao ensaísta e politólogo José Vidal-Beneyto e faz parte de um artigo publicado no "El Pais" de 20 de Setembro, p.p. Admitir os erros de um sistema económico que colocou o mundo à beira de uma catástrofe é negar, com humildade e grandeza, uma concepção ultrapassada de sociedade.
O que está em causa, actualmente, não é, somente, a estrutura económico-financeira, mas sim, e sobretudo, a sobrevivência da democracia.
Bush, com o Acto Patriótico, restringiu parte substancial das liberdades cívicas nos Estados Unidos, apoiando-se na cruzada contra o terrorismo. O 11 de Setembro foi o trágico pretexto para se ensaiar uma espécie particular de autoritarismo. As coisas não correram bem ao senhor da guerra. Mas a América do Norte possui uma experiência criptofascista, com a caça às bruxas do senador MacCarthy, na década de 50. Submetendo suspeitos de "comunismo" a pressões atrozes e a perseguições inimagináveis, a assim chamada Comissão de Actividades Anti-americanas destruiu milhares de famílias e homiziou alguns dos maiores intelectuais do país. A lista de delatores é aterradora: desde Elia Kazan a Edward Dmytryk, passando por Robert Taylor, Gary Cooper, José Ferrer, Robert Rossen a Frank Tuttle, houve de tudo e de todas as categorias. Outras personalidades que, invocando a Constituição, negaram-se a responder aos interrogatórios: Humphrey Bogart, Arthur Miller, Howard da Silva, Lewis Millestone, Gale Sondergaard, Jules Dassin, Jonh Berry e Joseph Losey.
Entre a grandeza e a miséria moral, os Estados Unidos têm saído vitoriosos. Uma poderosa corrente democrática sobrepuja, historicamente, a dimensão medonha dos crimes, como, por exemplo, a de Guantanamo. A raiz da grande nação é a construção da tolerância, e os seus maiores sempre propugnaram por hábitos e comportamentos reiteradamente humanistas. As intermitências do autoritarismo mais agressivo compõem o quadro de um país que arrebata os ódios mais irracionais e as paixões mais arrebatadas.
Falei como falei a fim de chamar a atenção dos Dilectos para um livro, fascinante por vários motivos, cujo título, "Verdade, Humildade & Solidariedade" [Edição Livros D’Hoje / Dom Quixote], pouco ou nada diz da importância do seu conteúdo. É um documento impressionante. O autor, João Ermida, nasceu em 1965 e desempenhou funções de relevo em várias empresas do mundo da finança. Com factos, datas e nomes, Ermida relata a excruciante experiência que o conduziu, quase, ao desespero. Um mundo desprovido de regras e, somente, com um imperativo: o "cumprimento dos objectivos", mesmo que, para isso, sejam utilizados os processos mais cavilosos e os métodos mais repugnantes. O volume lê-se como um policial. Diz João Ermida: "Este livro visa alertar sobre a forma como alguns dos máximos responsáveis [das] grandes corporações têm dirigido as mesmas, por estarem convencidos de que ganham o mesmo, independentemente de as gerirem bem ou mal. Sabem que, mais cedo ou mais tarde, com os conhecimentos que foram criando ao longo da sua vida de trabalho, voltarão a ser inseridos no meio, caso sejam despedidos. Este ‘jogo’ está a minar a forma de trabalhar nas empresas, o que faz com que, nos dias de hoje, a mentira seja mais respeitada do que a verdade. Quem mente acaba por ser mais admirado. O egoísmo passou a ser a qualidade mais valorizada. A verdade é importante para ser camuflada."
O "meio" não se retrai em contemplações de ordem humanista. A ganância, o lucro pelo lucro, a violência das exigências das grandes empresas atingem dimensões demenciais. Diz: "Por alguma razão, o uso de anti-depressivos não pára de aumentar em todo o mundo, com especial incidência no sector de serviços e dos grandes negócios (…) A necessidade que estas pessoas acabam por ter de mentir e enganar os seus colegas e clientes leva-os a viver uma vida que não é aquela que escolheriam de forma livre. O caminho mais fácil para superar este modo de vida são os anti-depressivos e, em alguns casos, as drogas. Os consumos destas substâncias não param, infelizmente, de aumentar."
Numerosos pormenores, numerosos episódios cuja escabrosidade é arrepiante podem ajudar a esclarecer-nos acerca do que hoje se passa, da crise assustadora que parece não ter culpados nem responsáveis, a não ser a "falta de regulação do mercado." Ermida, com assinalável coragem, e apoiado na sua prática pessoal escreve: "O poder que estes profissionais da banca de investimento têm é, nos dias de hoje, muito superior ao de grande parte dos governos de vários países importantes. Também os governantes contam, cada vez mais, com estes profissionais, para lhes validarem grandes opções de investimento, assim como para os aconselharem no que toca à venda de empresas estatais."
Já não se trata de promiscuidade entre a política e os negócios. A mistela assume o contorno da obscenidade. Ermida analisa, com clareza meridiana, a natureza dos "bancos de investimento", seus meios, seus métodos, seus fins, seus objectivos. O quadro é tenebroso. E explica o grau de selvajaria, porque de selvajaria de trata, a que pode chegar a ausência de valores e do que resulta a natureza da mentira e do embuste organizados com frieza implacável.
Há muitos anos que não lia um texto tão significativo como este. Ao fazer a reavaliação das grandes empresas globais e da estatura moral, intelectual e ética dos seus máximos responsáveis, João Ermida leva-nos à dilemática interrogação: como chegámos a esta miséria e de que forma dela nos podemos libertar?
Um livro a não perder, em circunstância nenhuma. E não me venham lá com tretas.(…)
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in “Jornal de Negócios” – edic online – 31.10.08
Baptista Bastos - b.bastos@netcabo.pt