sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Colunistas

Transcrevemos na íntegra o artigo de opinião do escritor e jornalista Baptista Bastos, publicado no “Jornal de Negócios” – edição online de 24.10.08.
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A. Anacleto

Que poderemos fazer por nós próprios

A situação no País, e do País, é cada vez mais complicada, e os paliativos que o Governo vai aplicando surgem, aos olhos e ao entendimento dos cidadãos, como remendos mal alinhavados. Devemos dinheiro e não sabemos como cumprir a palavra. Ninguém confia em ninguém e a angústia apossou-se, endemicamente, da população.
Somos os mais pobres, os mais desguarnecidos, os mais injustiçados dos povos europeus. Entraram, em Portugal, oceanos de dinheiro comunitário, sobretudo na década cavaquista, e o País progrediu porque não havia remédio: até a inércia dispõe de forças desconhecidas. Cavaco não foi responsabilizado de coisíssima nenhuma, e até chegou a Presidente da República.
Esta democracia é o que é: um facto lamentável. Os grupos parlamentares, supostamente representantes de todos nós, cada cor seu paladar, obedecem às estratégias das direcções dos partidos, e a consciência da ética republicana, que devia gerir os actos e imperar sobre as conveniências, está quase totalmente aniquilada. Na terça-feira última, José Vítor Malheiros escreveu, no "Público", um notável artigo, "Disciplina de voto, arma de destruição maciça da democracia", no qual põe em causa a natureza peculiar dessa "obediência." É um texto que deveria ser leitura obrigatória dos deputados. Diz: "Todos sabemos que os partidos são indispensáveis à democracia e ninguém – dentro do quadro da democracia – põe isso em causa. Mas os partidos são indispensáveis à democracia porque permitem a corporização das livres opiniões, das diversas correntes de opinião. Os partidos são organizações políticas que reúnem pessoas que professam a mesma doutrina e que visam conquistar e exercer o poder, mas numa democracia a sua existência justifica-se por permitirem reforçar a acção pública dessas pessoas que partilham uma doutrina, não por constituírem um meio de reprimir a acção individual de cada uma dessas pessoas ou de reduzir a variedade de opiniões em confronto na cidade."
José Vítor Malheiros reduz a "subnitrato" as instâncias que transformam as contingências do momento numa indispensável necessidade política. Escreve: "Os deputados que elegemos estão dentro de partidos, que nos oferecem um quadro político e ideológico de referência. Mas gostaríamos de pensar que são todos mulheres e homens livres e de consciência." Não são. E a degenerescência moral do Parlamento acompanha decadência da sua eficácia. Para que serve um Parlamento assim?
Esta mesma pergunta, com ligeiras variantes, formulou-a, no começo dos anos 20 do século passado, no "Diário de Lisboa", um grande jornalista, Aprígio Mafra. Desempenhava as funções de chefe de redacção do importante vespertino, era monárquico, e marcava na agenda o seu nome para relatar as sessões no hemiciclo. São textos demolidores. Aprígio Mafra, independentemente de ser monárquico, fornecia aos leitores reportagens exemplares, por muito bem escritas e rigorosas. Não manipulava, não escamoteava, não omitia. Os deputados é que eram os protagonistas da salgalhada. Há quem atribua a Aprígio o descrédito do Parlamento. Nada mais errado. Foram os deputados os fautores da desconfiança. Aprígo Mafra somente estilhaçou o temor reverencial em torno da instituição. Ontem como hoje. Criticar a Assembleia e quem lá está parece um tema proibido sobretudo para certos sectores da Esquerda. Será, sempre e sempre, uma tarefa pedagógica, ética e cívica o exercício da crítica a todos os sectores da vida portuguesa. O texto de José Vítor Malheiros constitui uma grave advertência acerca dos perigos que ameaçam a democracia portuguesa, já de si tão frágil.
Como resistirá uma democracia a este vendaval de desemprego que nos devasta? Os alicerces nos quais assenta o equilíbrio social estão a ser seriamente sacudidos. Segundo o "Diário de Notícias" de anteontem [22. Outubro, p.p.] pelo menos 23 mil famílias portuguesas deixaram de pagar os empréstimos contraídos, para compra de casa, por absoluta indisponibilidade. A maioria dessas famílias recolheu-se à residência paterna ou abandonou a cidade pela aldeia, onde a vida é menos dispendiosa. Para memória dos factos, circula, na net, uma lista impressionante dos vencimentos de "gestores", mordomias e prémios. Os números são "obscenos", para citar a indignada qualificação do dr. Bagão Félix, quando foi tornada pública a "reforma" de um desses.
A OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico) informa, em relatório, que, em Portugal, o fosso entre ricos e pobres não pára de aumentar. Vem o ministro Vieira e afirma, calmo e grave, que as coisas não são bem assim. Não, claro que não: são piores. A falta de clareza não é pecha deste Governo. Porém, como se diz "socialista" (embora cada vez o diga menos), ele deveria assumir a responsabilidade ética de falar verdade. As decisões governamentais atêm-se a uma relativização dos valores, e as interpretações do Executivo são feitas à margem das evidências. Se não entendemos o que nos diz Sócrates, também não conseguimos descodificar o discurso de Manuela Ferreira Leite – quando ela resolve falar.
Creio, apesar de tudo, que algo se modificará nas estruturas do "sistema", abalado por uma crise quase sem precedentes. Esse abalo irá reflectir-se em Portugal, como em todo o mundo. Saberemos colocar correctamente os problemas; aceitar a verdade, porque só a verdade é revolucionária (como dizia o outro); e recusar repetir aquilo que já não existe?
Que poderemos fazer por nós próprios?
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Baptista Bastos
b.bastos@netcabo.pt